A HISTÓRIA DE CARMEM
I
Carmem, como a inspirá-la o mar em frente
visse, e a noite a cair calma e estrelada,
tangeu, nervosa e apaixonadamente,
no dourado salão a harpa dourada.
E, aos pausados soluços do instrumento,
ia-lhe a alma de moça (como ao vento,
sem saber onde vai, folha perdida)
ia-lhe a alma num cântico àquela hora
fora pela janela, espaço fora,
longe da casa, longe desta vida.
Mas alguém de repente entra na sala,
e em rude voz que lhe feriu o ouvido:
- “Para que música?” (é o marido) fala.
Não gostava de música o marido.
II
Sem a harpa, a amiga fiel a quem contava
as suas penas e os seus dissabores,
Carmem: - “Não me permitem – suspirava –
“amar a música: amarei as flores.
Desce ao jardim. Borboleteia, esvoaça,
e violetas e cravos, quando passa,
rosas, jasmins, rindo, com as mãos nervosas
colhe. Volta, e ante o espelho às tranças pretas
prende os jasmins, os cravos e as violetas
prende à cintura, prende ao seio as rosas.
E olha, vê-se, revê-se. Quando, ai dela!
o mesmo tom de voz aborrecido:
-“Para que flores?” - a surpreende e gela.
Não gostava de flores o marido.
III
Sem música, sem flores, que seria,
Carmen, de ti, se, em seu poder, que é tanto,
como as flores e a música, a poesia
não viesse as horas te vestir de encanto?
Para Carmen agora a vida é um sonho;
Do verso às asas, o país risonho
vê da ilusão, entre os dourados climas;
lá vai! Que azul de eternos sóis coberto!
Tanto é o influxo que tem um livro aberto,
um punhado de estrofes e de rimas.
Range, porém, da alcova, a um lado, a porta,
e o tom de sempre, austero e desabrido:
-“Para que versos?” - o êxtase lhe corta.
Não gostava de versos o marido.
IV
Sem poesia, sem música, sem flores,
só e aos vinte anos, quem viver pudera?
Mísera Carmen! Já do rosto as cores
com o pranto esmaiam, já se desespera.
Quando uma vez...Não foi um cavaleiro
(como se diz) em seu corcel ligeiro...
foi das cousas que amava o amor vencido,
vencedor, afinal, que num perfume,
Num som, num verso, como outrora um nume,
A arrebatou dos braços do marido.
E onde hoje vive, ri, doudeja, salta
Carmen, ditosa Carmen, de alegria,
pois para ser feliz nada lhe falta:
nem música, nem flores, nem poesia.
CÉU FLUMINENSE
Chamas-me a ver os céus de outros países,
Também claros, azuis ou de igneas cores,
Mas não violentos, não abrasadores
Como este, bárbaro e implacável – dizes.
O céu que ofendes e de que maldizes,
Basta-me entanto: amo-o com os seus fulgores,
Amam-no poetas, amam-no pintores,
Os que vivem do sonho, e os infelizes.
Desde a infância, as mãos postas, ajoelhado,
Rezando ao pé de minha mãe, que o vejo.
Segue-me sempre... E ora da vida ao fim,
Em vindo o último sono, é meu desejo
Tê-lo sereno assim, todo estrelado,
Ou todo sol, aberto sobre mim.
DENTRO DO SONHO
Tanto de sonho lhe hão chamado a vida
Que por sonho eu a tenho e me convenço
Que tudo nela é sonho, breve ou extenso,
Pouco importa, querida.
Foi sonho aquela vez primeira que nos vimos.
A última sonho foi; o primeiro abraço
Em que os dois nos unimos;
Sonho o dia em que tu entraste por meu braço
Num templo, e logo após na casa que foi nossa;
Sonho o ver-me então moço e o ver-te
também moça...
Vinte anos todos de felicidade!
E de improviso tudo acaba, tudo...
Mas esta dor sem fim, esta saudade,
Aquele golpe rudo,
Tredo e medonho,
-Devo-me conformar - não passou tudo
De um sonho que sonhei dentro do grande
Sonho.
TERCEIRO CANTO
Cajás! Não é que lembra à Laura um dia
(Que dia claro! esplende o mato e cheira!)
Chamar-me para em sua companhia
Saboreá-los sob a cajazeira!
- Vamos sós? perguntei-lhe. E a feiticeira:
- Então! tens medo de ir comigo? - E ria.
Compõe as tranças, salta-me ligeira
Ao braço, o braço no meu braço enfia.
- Uma carreira! - Uma carreira! - Aposto!
A um sinal breve dado de partida,
Corremos. Zune o vento em nosso rosto.
Mas eu me deixo atrás ficar, correndo,
Pois mais vale que a aposta da corrida
Ver-lhe as saias a voar, como vou vendo.