A cultura fluminense perdeu ontem um de seus maiores cultores - Edmo Rodrigues Lutterbach, falecido às vésperas das comemorações de seus 80 anos. Homem sem jaça, intelectual íntegro, acadêmico zeloso e orgulhoso da rica tradição literária da instituição que presidiu por mais de 30 anos, a Academia Fluminense de Letras, ele parte deixando-nos um sentimento de orfandade só comparável ao de admiração diante do seu exemplo.
Tive o privilégio de merecer a sua amizade nos últimos anos, mantendo um relacionamento cujo elo mais forte foi uma profunda afinidade fluminensista. Aproximamo-nos quando do surgimento da Nitpress, editora que apoiou de forma irrestrita, apadrinhando de fato nossos projetos de valorização da cultura, da memória, da literatura e da identidade fluminense. Devo-lhe grande parte do reconhecimento que nosso trabalho tem recebido nos últimos anos.
Uma confiança mútua alicerçada provavelmente nos laços de conterraneidade e mesmo nas tradições comuns de nossas famílias, que imigraram na mesma época da Alemanha para colonizar a região da serra fluminense, e a sinceridade do trato consolidaram essa amizade. Passei a privar de sua hospitalidade, tanto no apartamento da Praia de Icaraí quanto na Fazenda Mont Vernon, em Cantagalo, onde fui apresentado por ele à sua biblioteca de mais de 30 mil títulos.
Os livros, que compõem um dos mais ricos acervos particulares do Estado do Rio, se dividem entre Niterói e Cantagalo, cabendo à biblioteca da fazenda abrigar talvez a mais completa coleção de obras sobre Euclydes da Cunha, além das mais importantes edições - e também algumas das mais raras - dos livros do célebre escritor catagalense. Tive a honra de completar essa coleção com um dos últimos trabalhos publicados sobre Euclydes, o livro Euclides da Cunha: Poesia Reunida, de Francisco Foot Hardman e Leopoldo Bernucci, que lhe presenteei em seu último aniversário.
Preparava-me para voltar a Mont Vernon na próxima semana, repetindo a tradição de celebrar o seu aniversário - desta vez, o de 80 anos - na ansiada festa em que anualmente recebia a família e os amigos na fazenda. Pretendia oferecer-lhe outro livro de poesia, desta vez reunindo os seus próprios e excelentes sonetos, projeto para o qual me convidou Neide Barros Rego, que tomou a iniciativa de organizá-lo.
Seria o nosso terceiro livro de sua autoria, além da antologia Os Fluminenses, organizada por ele juntamente com Márcia Pessanha, e a primeira obra a levar seu nome em uma capa com o selo Nitpress. Depois vieram Alberto de Oliveira, o Príncipe dos Poetas, que inaugurou nossa coleção “Introdução aos Clássicos Fluminenses”, e a segunda edição ampliada de A eternidade de Euclydes da Cunha, lançada por ocasião do centenário de morte do autor de Os Sertões.
Talvez me falte competência para aludir à importância literária de Edmo Lutterbach, tanto como autor quanto como bibliófilo, sem pecar por omissões imperdoáveis. Valho-me, no entanto, do testemunho de José Cândido de Carvalho, extraído de um artigo veiculado em O Fluminense, de 29 de maio de 1988, que também publicamos na orelha de A eternidade de Euclydes da Cunha. Embora o conjunto de sua obra, como escritor e intelectual, ultrapasse o terreno do euclidianismo, o texto que reproduzo a seguir revela com maestria essa faceta, que o tornou conhecido nacionalmente:
“Edmo Rodrigues Lutterbach nasceu para escrever sobre Euclides da Cunha como Paganini para tocar violino. Um samburá de circunstâncias envolve o artista de Os Sertões e o escritor deste excelente A Eternidade de Euclides da Cunha, agora lançado em todas as livrarias do País. Por coincidência - Euclides e Edmo - nasceram em Cantagalo. E por coincidência vieram ao mundo no mesmo distrito: Euclides na Fazenda da Saudade, que vivia de cama e mesa com a Fazenda Mont Vernon, onde Edmo abriu os olhos pela primeira vez. E ainda por coincidência, anos depois, Edmo foi viver na Fazenda da Saudade, em convívio com as mesmas salas e infinitos corredores que viram o menino Euclides. Quer dizer, Edmo sorveu Euclides pela mamadeira e dele ficou tocado para o resto da vida. E como nasceu escritor, de pena astuta e bem temperada, tirou o melhor proveito de todos esses felizes acasos para inventar um livro que não só vai ficar obrigatoriamente ligado à grande obra de Euclides como deve ser considerado dos melhores trabalhos já escritos em língua portuguesa sobre o sempre presente autor de Os Sertões. Por tudo isso é que volto a dizer: Edmo Rodrigues Lutterbach nasceu para Euclides da Cunha como Paganini para o violino.” |